BRASÍLIA - Palácio do Catete, sede da Presidência da República, Rio de Janeiro, 23 de agosto de 1954. O ministro da Guerra, general Zenóbio da Costa, e os generais Mascarenhas de Morais e Odylio Denys, chegam com carta assinada pelos oficiais do Exército pedindo a renúncia de Getúlio Vargas. O presidente diz que convocará uma reunião ministerial no dia seguinte. Mascarenhas ressalta a gravidade e aconselha a convocação imediata de todos os ministros. Vargas acata.
Acordados por assessores, todos os ministros se dirigem ao Catete. Em determinado momento, a filha do presidente, Alzira Vargas, entra no salão ministerial e brada para o pai resistir. A posição dela, que não havia sido convidada para o encontro, é apoiada por alguns poucos ministros.
“De fato, só Tancredo Neves, que era ministro da Justiça, ficou ao lado dele, chegando a dizer: ‘Reaja, presidente, reaja!’. Ficou claro que não havia outra saída a não ser renunciar. Depois, ele [Vargas] foi para o quarto e vestiu o pijama para o fatídico ato”, Antônio José Barbosa, professor aposentado do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB).
Mas, antes de dar a reunião por encerrada, por volta das 4h20, Vargas se pronunciou: “Já que os senhores não decidem, vou decidir.” Ele ordenou aos militares a manutenção da ordem e dos preceitos constitucionais. “Se quiserem impor a violência e chegar até o caos, daqui levarão apenas o meu cadáver”, ressaltou, antes de se retirar do salão e subir para o quarto, no terceiro andar. Familiares contaram que, sozinho no cômodo, Vargas não dormiu.
Abriram a porta do quarto três vezes, para ver como ele estava. Em uma delas, por volta das 5h30, Alzira levou uma nota oficial escrita por Tancredo, anunciando a decisão presidencial de licenciar-se do cargo até que todas as acusações fossem devidamente apuradas. Seria uma licença temporária. O presidente nem leu a mensagem, e pediu para que o deixassem sozinho.
Ao mesmo tempo, o major Ene Garcez dos Reis, chefe do pessoal do Gabinete Militar da presidência, distribui fuzis e metralhadoras aos subordinados que protegiam o Catete. Lutero, filho de Vargas, foi ao quarto do pai “Estamos prontos para a luta”, avisou. “Não vai haver luta. Nenhum sangue será derramado aqui hoje. Se algum sangue for derramado, será o de um homem cansado e enojado de tudo isso”, respondeu Vargas.
Pouco depois, por volta das 7h, foi a vez de Benjamin ir ao quarto. Bejo contou ao irmão mais velho que havia sido convocado para depor imediatamente. E os militares não aceitavam a licença do presidente. Exigiam o afastamento definitivo. Caso contrário, ele seria tirado do poder à força, como em 1954. Às 8h30, Vargas dispensou o camareiro Barbosa, que todos os dias fazia a barba do presidente. Pouco depois foi ouvido um tiro.
Moradores e funcionários do Catete correram para o quarto do presidente. Ele agonizava sobre a cama, com um buraco de bala pouco acima do monograma GV gravado no bolso do pijama de seda listrado em bordô, cinza e branco. Ao lado, um Colt calibre .38 com cabo de madrepérola. O presidente havia se matado.
Meia hora depois, por telefone, o ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, leu ao vivo, na Rádio Nacional, a carta-testamento encontrada na mesinha de cabeceira de Vargas. “Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”, assim encerrou o presidente.
“O tiro no peito foi fundamental na psicologia das massas”, ressalta Antônio Barbosa. O historiador diz que Getúlio Vargas já sabia que não tinha como continuar no poder, mas queria deixar uma mensagem. Por isso seu suicídio é visto como um ato político, enfatizado na carta que deixou. “E funcionou. Até então nunca havia sido visto no Brasil manifestação popular tão grande quanto a daquela massa que foi às ruas logo em seguida, inclusive com reação contra os detratores de Vargas”, pondera Barbosa.
Imediatamente o povo foi às ruas, em um misto de tristeza, incredulidade e revolta. Manifestantes depredam a sede da Tribuna da Imprensa, o jornal de Carlos Lacerda, maior adversário de Vargas. Outras 100 mil pessoas, em prantos, vão ao velório do presidente no Catete. A cidade do Rio de Janeiro era a capital do país. Ainda nem se falava em Brasília, que só seria inaugurada em 21 de abril de 1960.
Os integrantes da conservadora União Democrática Nacional (UDN), em especial Carlos Lacerda, jornalista e político de grande influência, eram os mais ferrenhos opositores do governo de Vargas. Lacerda publicou em seu Tribuna da Imprensa uma série de artigos que buscavam desestabilizar o governo. Muitos deles com acusações de irregularidades sem nenhuma prova.
A campanha para derrubar Vargas foi intensificada após Lacerda ser vítima de um atentado diante do portão do prédio onde morava, na rua Toneleros, em Copacabana, pouco após a meia-noite de 5 de agosto de 1954. Ele estava com o seu filho Sérgio, então com 15 anos, e o major da Aeronáutica Rubens Vaz, seu guarda-costas. O trio foi surpreendido por disparos. Lacerda escapou, mas o militar recebeu dois tiros fatais.
Sem provas, Lacerda imediatamente culpou Vargas. Na manhã do mesmo dia, seu jornal foi distribuído com manchete sobre o atentado, exibindo as fotos de um ferimento a bala no pé esquerdo de Lacerda. Ferimento cuja veracidade seria contestada depois. O prontuário do Hospital Miguel Couto, onde Lacerda teria sido atendido, sumiria. Mas o estrago no governo Vargas já estava feito.
O presidente sabia disso. “Até agora considerava Lacerda meu principal inimigo. Mas agora o considero meu inimigo número 2; o número 1, aquele que causou o maior prejuízo ao meu governo, foi o homem que atentou contra sua vida”, escreveu Vargas, à época, sem mencionar quem era o autor dos tiros. Lacerda também não falou quem, mas disse ter certeza que o homem agiu a mando de Vargas.
“Acuso um só homem como responsável por esse crime. É o protetor dos ladrões, cuja impunidade lhes dá a audácia para atos como o desta noite. Esse homem é Getúlio Vargas”, escreveu Lacerda em seu jornal. Os ataques foram estendidos e potencializados em programas de rádio.
Em 12 de agosto, uma semana após o atentado, a Base Aérea do Galeão instaurou um inquérito policial-militar (IPM) para investigar a morte do major Vaz. Sob comando do coronel Adil de Oliveira, a operação foi apelidada de República do Galeão. Era o início de uma forte investida das Forças Armadas contra Vargas. Durante o IPM, militares prenderam parentes do presidente como suspeitos de envolvimento no atentado.
Logo outras pessoas próximas ao presidente entraram para o rol dos investigados. Chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato se tornou o principal suspeito de ser o executor. “Transformaram a Base Aérea do Galeão em uma enorme delegacia de polícia, que chegou ao resultado que Lacerda queria”, afirma Antônio José Barbosa, professor aposentado do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB).
Outro integrante da guarda pessoal de Vargas, Climério de Almeida foi colocado na cena do crime após o depoimento de um taxista à polícia. O motorista contou aos investigadores que deixou Climério perto da casa de Lacerda na noite do atentado. A oposição, imediatamente, pediu a renúncia de Vargas. Pressionado, ele dissolveu a guarda pessoal e se comprometeu a colaborar ao máximo com a investigação.
Mas a medida não arrefeceu os ânimos dos opositores. Nos microfones da Câmara, deputados da UDN passaram a exigir a renúncia dele. Ao mesmo tempo, as outras forças se uniram à Aeronáutica na pressão à Vargas. Os militares mostravam descontentamento com o governo principalmente após a nomeação de João Goulart para o cargo de ministro do Trabalho.
Jango desagradava os militares por ser de esquerda. Os radicais o acusavam de estar a serviço da União Soviética. Enquanto foi ministro, entre outras coisas propôs um aumento de 100% no salário mínimo, em sua política voltada à melhoria das condições de vida dos trabalhadores. Acabou derrubado do cargo, por pressão dos militares. Medida que não afastou a desconfiança da categoria com Vargas.
Presidente que ficou mais tempo no cargo [18 anos], Vargas teve mandatos distintos. Ele assumiu a Presidência da República pela primeira vez após a Revolução de 1930, que depôs Washington Luís e rompeu o ciclo de alternância política entre as oligarquias mineira e cafeeira – a chamada política do café-com-leite.
Com a alegação de uma “ameaça comunista”, Vargas cancelou a eleição presidencial de 1937, dissolveu o Congresso e anulou a Constituição de 1934. Era o início do Estado Novo, que o Brasil flertou com a Alemanha e a Itália até o início da 2ª Guerra Mundial. Vargas ficou no poder até 1945, quando foi deposto por militares.
Vargas voltou por meio do voto popular em 1950, quando o Brasil era uma democracia. Havia correntes políticas com diferentes ideologias representadas em todas as esferas. O Congresso Nacional não era composto exclusivamente por aliados de Vargas. Muitos parlamentares formavam uma oposição aos ideais do presidente.
O presidente Getúlio Vargas em evento do Dia do Trabalhador no Estádio de São Januário, no Rio de Janeiro. Foto: Arquivo Nacional
O mandato final de Vargas foi marcado pela continuidade do seu projeto nacionalista e populista. O Estado interferia na economia, sendo o principal investidor. No período, houve o crescimento do movimento sindical, com a convocação de duas greves nacionais, além do aumento de 100% no salário mínimo.
De aliado de Hitler e Mussolini, o político gaúcho que se declarou presidente atacando o comunismo passou a ser visto como uma ameaça comunista pelos militares brasileiros. E, por meio do IPM que investigava a morte do major Vaz, selaram o destino do governo dele.
No decorrer do IPM, militares prenderam no Rio de Janeiro o pistoleiro Alcino do Nascimento. Ele confessou ter atirado em Lacerda por encomenda de Climério, que estava foragido. Pelo depoimento de Alcino, as suspeitas da autoria intelectual do atentado recaíram sobre Lutero Vargas, filho do presidente.
A mando do pai, Lutero apresentou-se espontaneamente ao IPM, pondo-se à disposição das investigações. “Estou sendo vítima de uma torpe difamação”, disse Vargas, em rede oficial de emissoras de rádio. Mas o cenário piorou nos dias seguintes.
Em 16 de agosto, sem conseguir controlar a tropa, o ministro da Aeronáutica, Nero Moura, pediu demissão. No dia 18, Climério foi preso e confessou ter recebido ordens de Gregório Fortunato, cuja prisão já havia sido determinada pelo IPM no dia 15. Mas o IPM nunca chegaria a um resultado de consenso entre historiadores.
Há quem diga que Fortunato, após dar outras versões, assumiu a culpa para proteger aquele que seria o verdadeiro culpado do crime, Benjamin Vargas, o Bejo, irmão caçula do presidente. O certo é que alguém muito próximo de Getúlio Vargas cometeu o atentado. Ele teria admitido isso a assessores.
Em 21 de agosto, o presidente recebeu no Catete o seu vice, Café Filho, que dias antes havia se reunido secretamente com Carlos Lacerda. O vice propôs ao presidente o que havia acordado com Lacerda: a renúncia conjunta de ambos. Getúlio desconversou. Comunicado por Café Filho da posição de Vargas, os militares subiram o tom e expuseram seu desejo publicamente.
Em 22 de agosto, oficiais da Aeronáutica e da Marinha divulgaram manifesto pedindo a renúncia de Vargas. No dia seguinte, generais do Exército fizeram o mesmo. “Os militares deram o recado curto e grosso que ele estava deposto. Ele não aceitaria um novo 45. Mas só tinha um jornal ao lado dele, o Última Hora. Carlos Lacerda liderava uma campanha feroz”, comenta o historiador Antônio Barbosa.
No fim da noite de 23 de agosto, o ministro da Guerra, general Zenóbio da Costa, e os generais Mascarenhas de Morais e Odylio Denys, foram ao Catete levar o documento assinado pelos oficiais do Exército. Após a reunião com os ministros, ainda no Catete, Vargas foi para o quarto, na madrugada de 24 de agosto.
Familiares contaram que ele não dormiu. Abriram a porta do quarto três vezes, para ver como ele estava. Em uma delas, a filha Alzira levou uma nota oficial escrita por Tancredo Neves, anunciando a decisão presidencial de licenciar-se do cargo até que todas as acusações fossem devidamente apuradas. O presidente nem leu a mensagem, e pediu para que o deixassem sozinho.
Pouco depois, Benjamin, foi ao quarto. Bejo contou ao irmão mais velho que havia sido convocado para depor imediatamente. E os militares não aceitavam a licença do presidente. Exigiam o afastamento definitivo. Caso contrário, ele seria tirado do poder à força, como em 1954. A resposta de Vargas veio com o tiro e a carta-testamento. “O tiro no peito foi fundamental na psicologia das massas”, ressalta Antônio Barbosa.
O historiador diz que Getúlio Vargas já sabia que não tinha como continuar no poder, mas queria deixar uma mensagem. Por isso seu suicídio é visto como um ato político, enfatizado na carta que deixou. “E funcionou. Até então nunca havia sido visto no Brasil manifestação popular tão grande quanto a daquela massa que foi às ruas logo em seguida, inclusive com reação contra os detratores de Vargas”, pondera Barbosa.
Na carta-testamento, Vargas se apresentava como vítima de uma conspiração das elites e de interesses estrangeiros, o que provocou uma comoção nacional e o transformou em um mártir para muitos brasileiros. Com seu gesto, radicalizou ainda mais o debate ideológico que tomava conta do Brasil e resultaria no golpe militar de 1964, que derrubou João Goulart, sob o fantasma do comunismo. Jango, assim como Vargas, era gaúcho. Mas, em vez deste, preferiu deixar o país. Morreu no exílio.
O IPM da Marinha, finalizado em setembro de 1954, concluiu que Gregório Fortunato foi o mandante do atentado que tinha Lacerda como alvo. O pistoleiro Alcino João do Nascimento chegou atirando, sem nada dizer. O jornalista foi ferido no pé, mas fugiu para a garagem de casa com o filho Sérgio. Já o major-aviador Rubens Vaz partiu, desarmado, em direção ao pistoleiro.
Quando deu uma chave-de-braço no atirador, Vaz levou o primeiro tiro. Ao cair, tomou o segundo. O assassino foi identificado depois como Alcino do Nascimento. Não havia mais nenhum homem na cena do crime. Não era para Vaz estar na função da guarda de Lacerda na noite daquela quinta-feira. Ele substituiu outro oficial, Gustavo Borges, que lhe pedira para trocar o turno.
A versão oficial foi confirmada por júri popular em 1956. Mas foi [e ainda é] contestada por pesquisadores ao longo dos anos, que apontaram falhas no inquérito. Alguns sustentam que havia partido de Lutero Vargas, o filho de Getúlio, uma ordem para um “susto”, mandar um “aviso” Lacerda. Nunca tentar matá-lo. Nunca foi feita reconstituição do crime ou acareação entre Lacerda e Alcino.